25.12.21

À ESPERA DO ”PAI” NATAL… Por: Paulo Gilberto Camacho

  Na década de 50 deste “moribundo” século, o povo madeirense vivia, por um lado, as dificuldades inerentes  da recessão económica mundial que se fazia sentir no pós-guerra; por outro, o eterno “ram-ram” social de um tradicionalismo propício ao sistema político de então, consubstanciado na trilogia do “Deus, Pátria e Família”. 

As tradições familiares, aliadas à ideia fadística do “não peças demais à vida, aceita o que ela te der…”, levavam as pessoas a pouparem o ano inteiro para, na Festa, terem o mínimo para celebrar a quadra natalícia, homenageando o Deus-Menino. Ricos e pobres, nesta terra, todos comungavam desta ideia: “poipar” para a Festa… Sim, porque nesse tempo ainda não se vivia a febre do consumismo hodierno. 

E foi assim que, em meados de 1950, mestre Manuel, contados os tostões na antevéspera de Natal, já noite, sentenciou para a mulher e filhos: «Amanhã, por volta das quatro e meia da tarde, vocês (apontando para os dois filhos mais velhos), estejam na paragem do “horário” para me ajudarem a trazer as compras de Natal até casa.

 Tu (voltando-se para a mulher), vai limpando a casa (apenas quarto de dormir e cozinha) que depois eu ajudarei no resto… 

Véspera de Natal, mediante esta ordem que prometia uma Festa bem melhor que as anteriores, José e Gualberto não pararam desde manhã, numa azáfama contínua, ajudando a mãe em tudo o que era preciso: desde varrer o terreiro, ao ir à fonte buscar água em baldes e “aguadores”, até ao calcorrear veredas em busca de carvão para que a boa mãe pudesse passar a ferro, a roupa que iria ser estreada na missa daquele dia de Natal. 

«José, olha que já são quatro horas. Vai mais o Gualberto buscar o pai. Ouviram o que ele disse ontem?…» Obedientes, lá foram para a paragem da velha camioneta… Quatro e meia da tarde lá estavam à espreita dos passageiros que dela saíam, esperando o pai carregado de compras… Nada. De quarto em quarto de hora, o “Negus” chegava, dava a volta, as pessoas saíam e partia rumo à cidade… José, cerca de seis anos mais velho que Gualberto, dizia-lhe, experiente, perante a impaciência deste: «Perdeu este carro; deve vir no outro, de certeza…» 

A noite, já de inverno, caía rapidamente e o frio acentuava-se. Ambos, de calção e em “mangas de camisa”, começaram a tiritar… O tempo ia passando e o pai, “abarrotado de compras” nunca mais chegava… 


Para passar o tempo, combater o frio e distrair o espírito, começaram aquelas duas crianças a inventar passatempos: correrias, escondidas e, por fim, olhando o mar — sempre este mar ilhéu de horizontes infinitos — fixaram o olhar no paquete da “Greek Line”, todo ele iluminado em grinalda, ancorado na baía do Funchal.


Olhando um para o outro, cada um conjecturava e comentava uma hipotética viagem a bordo de um paquete daqueles… «Quando for grande, vou fazer uma viagem num barco assim…», dizia um. Outro projectava viajar no “vapor do Cabo” para ir ver o padrinho que estava na África do Sul e que nunca conhecera… No entretanto, os “horários” subiam e desciam sem que o pai aparecesse “abarrotado de compras”… 

A noite continuava a subir no tempo, negra e gélida, apenas iluminada pelas estrelas do céu e pelas bruxuleantes lâmpadas de iluminação pública, ainda a corrente alterna. “Batendo queixo” e com algumas lágrimas à mistura, com o sono que começava a aparecer, encostaram-se um ao outro para melhor sentirem o calor dos corpos, enganando a friagem que se fazia sentir. Caminho abaixo, já muitas pessoas iam, de fato estreado, em direcção a igrejas e capelas, para assistirem à “Missa do Galo”. Uma delas, abeirando-se daqueles dois miúdos, questionou: «Vocês não são filhos do mestre Manuel?…» «Sim, somos… 

Estamos à espera do paizinho; ele disse que vinha no “horário” das quatro e meia e ainda não chegou…» — respondeu o José, enquanto o Gualberto fazia uma esforço para abrir as pestanas pesadas de sono, tentando olhar para a pessoa que falava, não fosse o pai que já tivesse chegado. «Então, são horas de estarem em casa. 

Se calhar ele foi por outro caminho. É melhor irem para casa. Daqui a pouco o “Pai Natal” vai chegar… Dêem cumprimentos ao pai e umas Boas-Festas para todos. Adeus.» 

E lá se foi o bom do homem que conhecia a família do mestre Manuel, sabendo das suas dificuldades económicas… No ar continuava a ouvir-se os altifalantes da animação no Campo do Almirante Reis, com o carrossel, carrinhos eléctricos, etc.: «Outra corrida…».  

E o tempo continuava a passar à medida que as pessoas seguiam, alegremente, para a Missa da Meia-Noite, lançando bombas de estalos para as bermas do caminho. No recanto da paragem, José e Gualberto continuavam aninhados à espera do pai… 

Já passava das 23h30 quando a mãe, envolta num sobretudo já puído e que o sogro trouxera da América, como sendo para seu filho, assomou à boca do beco: «José e Gualberto, vamos embora para casa… 

O paizinho já chegou.» A sua voz trémula pelo frio que se fazia sentir, denunciava bem o estado gélido que o seu espírito se encontrava… Pelo caminho (cerca de 15 minutos daquela paragem até casa), às perguntas constantes dos filhos, de como o pai chegara, ela só respondia: «Já chegou; vamos depressa que já é muito tarde…» Conhecedores de situações semelhantes, aqueles dois miúdos, caminho acima, subiram a encosta íngreme, cogitando: «A estas horas só pode ter chegado bêbado!…» 

Já nas proximidades da velha casa, ouvindo os foguetes anunciadores da “Missa do Galo”, aquela mãe desatou num pranto silencioso, agarrando os dois filhos, um de cada lado e, apertando-os contra si, exclamou: «Estamos quase a chegar!» Casa adentro, o pai estendido sobre a cama, ainda vestido e apenas sem sapatos, ressonava alto, interrompendo o sono com convulsivas tosses. 

A mãe explicou: «O paizinho encontrou o compadre na “venda”, na parte da tarde… Como ele tem carro, veio pô-lo à entrada do beco…» «E as compras?» — perguntou o José.  «Olha — apontando para um garrafão partido — trouxe-o mas só chegou com a asa inteira… Paciência.» E agora, um novo e convulsivo choro acometeu aquela desvelada mãe que tudo dava pelos filhos. «Vamos dormir… 

Vá, já são horas!» Cabisbaixos, tomaram-lhe a bênção, seguindo ambos para a cama onde, tomados pelo sono, nem deu para sonharem com um possível presente do “Pai Natal”. Habituados a se levantarem cedo, o Dia de Festa não fugiu à regra. 

A medo, vestiram-se e vieram ter com a mãe sentada num banco de cozinha, mãos entrecruzadas sobre a cabeça e lágrimas a escorrer cara abaixo. Dando conta dos filhos mais velhos, voltou-se para eles dizendo: «Não façam barulho. 

O Abílio e a Olívia (de meses) ainda dormem e o paizinho também…» Apontando para um canto da pequena cozinha, prosseguiu: «Nessa canastra, o que vocês vêem foi a minha madrinha que trouxe…» É o “Pai Natal” deste ano… Dividam os balões entre vocês. Desta vez não houve Pai Natal. Vamos esperar para o ano…» E novas lágrimas silenciosas rolaram naquela face de mãe extremosa… 

Na verdade, a madrinha daquela mulher, conhecedora das suas dificuldades, manhã cedo do dia de Natal, batera-lhe à porta trazendo num açafate, além do calor humano de madrinha amiga, um bolo de mel, uma garrafa de vinho, um quilo de arroz, um naco de carne de porco e umas “bolas de assoprar” para os pequenos… Não fossem eles continuar à espera do “Pai” Natal… 

(À laia de “conto de Natal” [episódio verídico onde apenas os nomes das personagens são fictícios], artigo de minha autoria publicado na edição de Natal do Jornal da Madeira, 25-12-1999.) Foto: Imagens Google/DR

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